Porque é aqui que há de nascer
e gerar frutos a minha e a sua eterna
ignorância. Aqui que há de encontrar a
vitalidade e o sustento máximo para a
sua loucura. Aqui vive, agoniza, mas não
morre o nosso egoísmo e a nossa faceta
que imprime necessidades.
Três vivas e saudações ao seu umbigo.

sexta-feira, janeiro 21, 2005


Prenha

A falar a verdade, é melhor que finjamos um simplificado conto de fadas. Fadas, querubins e um céu muito azulado.
Eu não era amiga de ninguém ali. Tinha, no máximo, uns dois ou três choros conhecidos e uns quatro olhos já vistos em algum lugar. Eu não era amiga de ninguém e mal sei o que me levara a tal decisão, num sábado, num sol, numa estrada empoeirada, rumo a uma casa que bem sei, jamais ouvira falar.
Já era tarde quando me vi numa barriga de sete meses, eu sei, mas pelo que contava, tudo era no mínimo prazeroso e até um filho do desgraçado não me faria tão mal. Herança, quem sabe. Vai ver o bastardo roubasse um nome rico e uns milhares que resolveriam a nossa vida.
Mas não. Eu não era amiga.
Quiçá fosse mais uma a parir de todo o mulherio, idoso ou casto, todo gorduchinho.
O que interessa é que o maldito já era branco e duro, ao mostrar uma pele de gesso, uma mão quase fixada sobre a outra e um par de pernas longo sem a sensação de logo se mover. Já fedia. O cheiro era pior perto dos lábios, mas muito me assustou a maneira com que estavam suas unhas: todas, sem a exceção de um suicida numa corda ao pescoço, com carne e sangue preto quase que sobrando dentro do relaxo de não apará-las. E o pescoço era notório pela necessidade das flores em toda a sua volta, como se assim escondesse uma denúncia.
A mim, matou e fora morto. Ao resto, não sei.
Uma das ruivas também grávida, não esboçava sentimento algum. Não era feliz e não era triste, era, no mínimo preocupada. Era diferente de mim, embora também eu não esperasse manchar uma maçã rosada com a tinta preta dos olhos mais belos de todos espelhos. Ela era diferente. Eu sentia ausência de uma cama quente, ou preocupação por sustentar esse bicho do meu ventre. A moça, apesar de toda a sua pobreza, todo o perfume barato e o batom démodé, pouco mostrava a inquietude que também o seu feto tinha por não mais ter pai.
O único homem dali era um negro velho e porco. Certamente eu o julgaria empregado ou capacho do leitão maior, mas diziam que o mulato era o seu pai, pelo tom moreno que a sua pele acusava e que ele, justificava ser conseqüente de tantas cavalgadas matutinas.
Mas não eram apenas os braços e as costas que eram negras em todo aquele corpanzil, e fato é que já me vagara a idéia de perder a minha loura cabeleira para um rude e mal feito conjunto de cachos no que seria chamado de nosso filho, ou cabelo de nosso filho.
Era como se todos os pêlos que cobririam a vergonha ou o orgulho tivessem tomado o couro e parte da costela. Mas os olhos eram verdes, e aí, eu brincava de dormir com um bronzeado, apesar de tanto.
O considerado pai tinha uma camisa amarela, antigamente até a chamaria de branca, pelos botões; tinha uma calça toda xadrez e uma botina marrom que eu diria estar manchada de sangue. Fedia. Mas diferente do morto, fedia por falta de banho.
O único ser presente que não me espantava uma encenação mal feita era um cão. Um cão meio cinza, meio branco. Até bonito se não fosse as sarnas lhe roendo as patas e as proximidades dos dois olhos castanhos. Era o único ali triste. Bastante triste. O único que apesar de mal tratado e resignado por ser assim, sentia a dor da perda.
Se eu era a cadela, imagino o que não era um vira lata.
Não sei dizer por quanto tempo mais o velório correu, a única certeza é que pela quantidade de moças e pela demora dos dois esperados homens que levariam o caixão à cova, tudo aquilo fez o corpo cuspir as entranhas, quando, desesperadamente, taparam a cama do defunto.
Em pé, por mais duas horas, até me certificar de que travaram e crucificaram a memória, eu sentia um líquido quente e grosso me escorrer até os dois pés. Urina, talvez, já que dizem que as grávidas têm a dificuldade de controlar as próprias vontades. Pouco me preocupei, já que o que me vestia era longo e preto o suficiente para disfarçar todo o imprevisto.
Não movi um músculo e não esforcei um olhar para baixo para ver se a tonalidade que me manchava era mesmo neutro. Lembro-me do corvo grande e preto. Da árvore ainda sem folhas e da fedentina que se aproximava.
Eu estava nos braços do negro, com o vestido aberto e com todo o abdome sangrando.
Faltava-me talvez a mesma quantia de carne que o sobrava dentro das unhas e sobravam-me cicatrizes nas palmas como se as deixasse queimar numa corda que as percorrera rápido demais.