quinta-feira, novembro 04, 2004
O Fazedor de Sonhos
Eu era bem nascida, sim sinhô.
Era nascida em cama branca, num quarto branco, de fronha e lençol até que limpo. Limpinho que cheirava sabão feito novo.
Nascida de mão de menino moço que chamava Doutô.
Eu era bem nascida, não tinha como não ser não.
Tá certo sim que a minha mãe morreu de tanto sangrar e até que ouvi falar que perdeu uma tripa quando eu apontei a cabecinha pra fora dela, mas nada que estrague o nascimento cancela o que eu replico: Eu era bem nascida.
A mãe escapou feito onça quando invadiram a taba. Já era barriga quando foi empregada e escrava, mas meu pai decidiu que só teria mulher forte e se fosse assim, que se enfeitasse sozinha. E nunca mais a viu.
Dizem os mais velhos, que mesmo Guariní, teve os dois corações arrancados por uma serpente. Dizem que ela primeiro abocanhou o do peito, deixando-o amortecido de tanta confusão que o que sobrara tinha formado. Depois, me soa que em três passos dele e duas corridas dela, ela o enlaçou pelo pescoço e sugou pelos lábios qualquer piedade ou humano que lhe sobrara; e ele vive hoje por aí, feito planta de perna bem longa, sem piedade, sem fome e sem vontade.
A minha mãe arrumou outro amor e fora este senhor quem me voltou à taba, enroscada e enlaçada no seu peito.
Decidi que melhor seria ficar por lá até que chegassem a mocidade e o marido brotasse na minha vida. Plantei feijão, pisei no cacau, amassei uva e manchei a mão de sangue no facão da cana.
Por mais de cinco das viradas da Lua, eu corri de bicho e espírito ruim. Me escondi em toca e sobrevivi de Içá.
Por mais de cinco, e em mais de cinco perdi o outro pai, a outra mãe e o Pajé.
Perdi meu sangue puro por um homem que me amarrou os pulsos e me arrancou todo o cabelo. Cortou meu lado esquerdo me marcando de cicatriz, porque dizia que ainda que velha e feia, ele ia voltar à Ocara e me pegar pelas pernas abertas mais uma vez.
Depois de muito, nos ombros embutidos e calejados eu fiz a minha família, e fui feliz a um e outro pedaço de índio que voltava para ser de novo.
Tive oca de barro bem feito, com duas portas e uma janela pintada à copa madura. Embuchei de dois mebira de olhos pretinhos, pretinhos, feito asa do Melro. O marido já era um cari de cabelo quase que pintado a barro de telha e olhos tingidos a céu chuvoso quando se respinga um azul na imensidão cinza. Era bem bonito, o meu marido, sim sinhô.
Tinha o costume de reunir o resto dos pele vermelha e discursar sobre os sentimentos dos pele branca, o que muito estranhava os beiços e os couros dos mais velhos, em princípio. Mas mesmo assim, com tempo e muita da insistência do Guará, as palavras iam sendo ouvidas sem resmungo ou discussão e quando tatuavam sorrisos e conquistas, passavam a chamar à toda aquela hora de audição, de sonho, e ao meu Guará, de seu Fazedor.
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