Porque é aqui que há de nascer
e gerar frutos a minha e a sua eterna
ignorância. Aqui que há de encontrar a
vitalidade e o sustento máximo para a
sua loucura. Aqui vive, agoniza, mas não
morre o nosso egoísmo e a nossa faceta
que imprime necessidades.
Três vivas e saudações ao seu umbigo.

sábado, dezembro 04, 2004


Amém

-Onde é que dói?
-Aqui. Dói aqui, aqui e aqui.
-Tonturas? Desmaios? Vertigens?
-Dói. Dói aqui. Aqui e ali.
-Febre? Desânimos? Sudoreses?
-Aqui. Dói aqui e aqui e aqui e ali.
Dói uma dor aguda, uma dor de rasgar a carne e amolecer o músculo. Dói de fraqueza. Dói de fingir pressão na cabeça e dói de arranhar em unhas sujas, o começo das costas até o final dos tornozelos.
Choque. Torções. Calafrios. Utopias. Alucinações.
Dói a dor de cairem os cabelos e a dor de nascerem os dentes. Dói osso quebrado e ferida curando.
Grita o maior de todo o meu desespero e ensurdece o meu bom ouvido.
Enterite. Gastrite. Rinite. E insiste.
Insiste e reforça o contorno se a sensação é entravada de transparecer, entre uma pele que oscila amarelo e pardo, um tom esverdeado de um fígado falido.
Aqui. Aqui e ali.
E são os pêlos. Os pêlos que me fazem bicho na defesa tola de mim, a mim mesmo, ao tentarem me impôr coragem, quando o único grunhido compreensível é o medo.
Mas é ali. Mais é ali.
Venham emplastos, confetes, bebidas, xaropes, fumaças, açúcar, caramelo. E sorrisos. Venha o falaz de todos os meus sorrisos vomitar gargalhadas numa boca já amarga do gosto fúnebre do próprio estômago.
Venha a desairosa reação de todo o conforto malicioso que as compras de saúde podem me trazer.
Venham, que estou dispnível à locação da ciência infantil de descrença tola do deus maciço. Desagua-me sossego que desenho-lhe em giz pastel, nas cores primárias, vibrantes e ainda castas de treva.
Já sinto meu corpo morrendo, já sinto o sangue sendo mais frio e já me vejo perdendo a cor.
Já me vejo perdendo as cores.
Solta-me a mão doutor e por favor, vista-me o terno azul.
Isso. Amarra-me a gravata e pentea-me os cabelos.
As flores. Por favor, moço, encomenda-me as flores e convida os amigos.
Aliás, o amigo.
Já vejo as pernas serem fracas e entregarem ao cérebro a carta de demissão após quarenta e sete anos de cartão. As mãos comunicaram a conclusão mal paga das horas extras.
Pega-me a mão doutor.
Certifique-se que já é fria. Ponha-na sobre a barriga. Exato. Um pouco mais para baixo, desviando as feridas.
Já é claro como sou olhos, boca e uma nariz que fraqueja e insiste na fidelidade boa para que, minuciosamente, eu ensine a você, meu amigo, como fazer bonito comigo.
Foi bom lhe chamar por tantos dias.
Agora. Se não lhe for tão ruim, joga fora todos os comprimidos que me deu, pois não há um que não tenha o frasco perdido pelo tempo da validade.
Pois é. Não é que não lhe acreditei. Apenas duvidei da possibilidade da morte.
Foi bom lhe chamar por poucos dias.
Talvez o senhor pudesse me cobrir. O tule se encontra na segunda gaveta, à sua esquerda.
O branco ficaria melhor com o terno azul.
Por fim, meu amigo, põe na vitrola o tango argentino para eu poder ansiar, no mínimo, uma Passárgada.
Se souber, seria de bom tom que rezasse o Pai-nosso.
Começa com "Pai nosso".
Agora fecha-me os olhos secos de tanta vida. De tanta descrença. De tanta saudade.
De tanta solidão.
Aperta-me as mãos, doutor.
E acaba com "livrai-nos de todo o mal..."