quarta-feira, novembro 17, 2004
A sem saída
É que se eu fosse contar a moça, no cuidado de um poeta que inaugura uma escola ou abandona seus vícios tóxicos, eu me remeteria ao desejo ou me calaria na angústia falida de inventar sensações.
Não deveria ter um palmo a menos da minha altura e quiçá tivesse poucos suspiros a menos de todo o meu peso. Ela realmente era grande. Mas deixava grunhir traços sutis que marcava uma necessidade verdadeira de delicadeza.
Era tão branca, mas tão pálida, que a sua pele toda me causava a lembrança de uma maciez tão infantil que, hipnotizado, eu era capaz de julgar-lhe castidade. Os seus pés, apesar de todo o seu tamanho, me permitia o mesmo desejo de beijar suas partes, ainda que assim fosse eu o único a chamá-los frágeis.
Mantinha o olhar sempre mediano, sem sonhar e sem remetê-lo à credibilidade tola de bicho homem e sua mania de pensar. Olhava reto e talvez fosse capaz de torcer o pescoço apenas nas vezes em que replicava seus insultos.
Iracema. Iracema dos lábios de fel.
Lia pouco, ria pouco e ainda assim, as mãos eram distintas pela surpresa seca de simplemente não se surpreender com nada. Quando de todas as fábulas o mundo falava, portava-se como sábia, mesmo sabendo que não passava de uma aluna do menos crente dos aprendizes. Não se sabe se a moça era dona da crença que faz as pessoas serem positivas, se era incapaz de enxergar muito bem a si mesma, ou se era besta, mesmo.
Não se vestia. Apenas cobria os fartos seios espalhados sobre um peito ou derramados numa grande barriga. Na nudez das pernas esperava que uma saia muito curta e florida causasse alguma prudência.
Morava numa esquina grande e bem pintada a tinta branca. Tinha uma avó, um canário, e nenhum homem.
E resolveu chegar perto. Perto, e tão perto que o perfume impregnado nos cabelos pretos à graúna foram absorvidos e recalcados na aba de um paletó desbotado de cinza velho e cansado. Meteu-lhe as mãos dentro da saia, virou as costas, mudou de calçada e saiu andando pela mesma distância que os separava antes do perfume.
E um outro menos engravatado amoleceu-lhe os seios, assim como um pretinho beijou-lhe os lábios e abraçou-lhe carinhosamente. Depois um de camisa nova e sapato brilhoso, e um menininho que certamente ainda sentia o borbulhar do sangue jovial lhe jorrando taras por qualquer cadela no cio.
Mas ela não. Ela era passiva e vivia por receber carícias, apertões, elogios e olhares, mesmo que fosse autora única do cenário depreciativo com que dividia a própria história.
Não era nada mais que um corpanzil a mercê da busca de cada pessoa que precisasse mudar de calçada.
Duvidou que as pessoas eram iguais, mas morreu teorizando as suas podridões.
Fomentou a própria idéia numa busca incessante de tentar encontrar nas pessoas o que nela mesmo sentia ter evaporado; a essência.
A essência de sentir-se espírito junto às carnes que boiavam numa poça vermelha e quente ao seu redor, ou a de amenizar a ardida sentença a que era forçada cumprir por ser a pessoinha errante de mundo e amante de vida.
"Aqui jaz uma cópia de você. Não doutora, não vadia, não barata": Eram as letras tortas que tatuavam o mesmo poste do ofício, numa última vez em que, também eu, tive de mudar de rua.
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