Porque é aqui que há de nascer
e gerar frutos a minha e a sua eterna
ignorância. Aqui que há de encontrar a
vitalidade e o sustento máximo para a
sua loucura. Aqui vive, agoniza, mas não
morre o nosso egoísmo e a nossa faceta
que imprime necessidades.
Três vivas e saudações ao seu umbigo.

sábado, agosto 14, 2004


Anjo

"Da sua vida?"
E um silêncio de dever e responsabilidade lhe corroia as palavras que pediam não, mas deveriam ser sim.
"Não."
Vidas distintas, caminhos opostos e ainda assim, de tempo em tempo viam-se entre beijos e desejos de promessas longas de amor verdadeiro.
Vício e desprezo talvez fossem suas maiores capacidades, ou os seus maiores desesperos.
Era como se o tempo disponível à vida fosse se esgotando a cada momento em que adiavam um contato que lhes causasse conforto ou desespero.
Era como se lhes roubassem o motivo e os redimissem aos problemas de duas vidas monótonas, comuns e sem sentido.
Não eram nada além de desconhecidos, mas nada diferente de dois amantes, secretos, tímidos, íntimos e presos.
Não haviam se tocado, sem mãos, sem carícias, sem tantas frases ou idéias demasiadamente longas trocadas, entretanto, entre seus pares de olhos castanhos, delineados e marcantes, havia uma presença de vida quase tão maior ou tão bem inventada que chegava a ser a crença e a motivação de continuar a fantasia.
Encontravam-se entre prateleiras de livros, que embora fosse dela uma das suas maiores fascinações e dedicações às horas, o cheiro do homem lhe roubava os nomes, ou autores e o interesse de saber alguma coisa mais de algum outro novo que estava alí, parado entre tantos outros, pré-destinados à monotonicidade. Entre estas, trocavam olhares, fugiam dos beijos e vez e outra as mãos se esbarravam.
Encontravam-se entre músicas, entre balbúcios de pensamentos, entre dúvidas e certezas.
Perdiam-se entre a carne e o espírito.
Sumiam-se, apagavam-se e voltavam a se redesenhar.
Pouco durava deles, muito custava, no entanto, que um dia à loucura lhes fosse aumentado. Mas foi. Foram meses. E tanta dor, mas uma dor anestesiada e amortecida pelo tamanho indescritivo e significativo do prazer que toda aquela brincadeira de faz de conta os mentia.
"Vem comigo?"
"Um dia"
E assim, desprezaram, creram e geraram a incoerência.
A vida perdera o chão e as coisas ganharam formas. O ar era tão perfumado e seria capaz de jurar que o céu descera. Desgostoso já era o gosto da saudade e ambicioso e egoísta vinha tornando-se o apreço à presença.
Deus sabia quem pagaria por um desespero pagão, mas se essa fosse a preocupação de menina e mulher, uma outra oportunidade, segundo a mais velha, estaria sendo dada aos ventos e arremessada à uma trégua sem fim.
Menino era quase doce e persuasivo, quase puro e consciente. Bem na verdade, era ainda menino, ainda criança de era uma vez e de o sempre ser o eterno. E ainda assim, sabia como dar à sua, o medo e a angústia que nenhum outro homem poderia.
Menina-menina. Menina-mulher.
Ah se soubesses o quanto dessa personalidade indecisa foi lhe dada.
Se compreendesses quão dolorido fora o punhal que enfiou-lhe na carne, rasgando tecidos e rompendo linhas, friamente deixando que escorresse um rubro calor de um coração que calejado de momento e experiente de vitória contou os tempos desesperados de uma dor sem cura.
Já se via as mãos dadas e se lia num luminoso ridículo e impresso em cada testa, o quanto eram felizes de momento, quando foram separados do convívio que gerava espectativa e mchucava o sentimento.
Menino-menino morrera, mulher. Menino-menino se fora para um sempre quase tão distante, quase tão impossível e fantasioso, que da menina-mulher sobrou um coração sem estrutura, sem pulso e sem qualquer tentativa agradável de jogar tudo para o alto como com ele fez, de renunciar o tanto que pode e de aceitar voltar a vida quando já era morte.
Ela mesma o enterrara, cavara cova funda e despejava sobre o corpo o mesmo cheiro de anjo que era de apreço comum, para que com ele fossem as mesmas lembranças que um dia lhe jogava o ar que hoje lhe era escasso.
Menino-menino morrera quando julgava ir buscar vida ou morte que coubessem os dois. Morrera e deixara sozinha mais uma mulher. Sem vontade. Sem carinho. Sem espectativa diferente de que ele mesmo lhe provasse que tudo não fora vão.