Porque é aqui que há de nascer
e gerar frutos a minha e a sua eterna
ignorância. Aqui que há de encontrar a
vitalidade e o sustento máximo para a
sua loucura. Aqui vive, agoniza, mas não
morre o nosso egoísmo e a nossa faceta
que imprime necessidades.
Três vivas e saudações ao seu umbigo.

segunda-feira, dezembro 08, 2003

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O diário da meretriz

Exatamente nove horas e quinze minutos. Banho com o sabonete caro e guardado para ocasiões especiais, xampu e creme de babosa para manter os fios sedosos, creme hidratante de cheiro adocicado porque fora dito que era afrodisíaco, calcinha preta e espartilho vermelho. Faltava a roupa. Pensei numa saia longa e comportada acompanhada de uma blusa com farto decote, mas a memória fora infalível e o que me conquistou fora o inverso: saia curta e blusa comportada; minhas pernas ainda eram infalíveis.

O mesmo bar. As mesmas músicas e o mesmo cigarro enjoativo. Ele não estava lá, mas havia de chegar até a madrugada.

Não bebi nada que fosse pago pelo meu dinheiro, mas o número de clientes ainda era grande e satisfatório para sentir-me embriagada.

Um homem de cinqüenta anos cheirava bem e fumava um bom cachimbo, mas o menino casto apareceu-me mais atrativo. O tempo escorria e meu coração doía de uma forma tão intensa que eu era crente de sentir alguma coisa além de saudade por aquele homem.

Chamava-me de meu bem e tinha o costume de pegar em meus seios antes de beijar-me a boca. Tinha oito anos à frente dos meus e era um solteiro endinheirado, vivia de passagem e quase sempre me levava quando os dias eram longos numa cidade estranha, pois não agüentava viver sem sexo. Tínhamos um romance, um daqueles carnais e essencialmente relacionado com interesses, mas isso fora há seis anos. Há seis anos ele era meu cliente preferido e fiel.

Fiel, não por não se encontrar com outras e tão pouco por dizer-me palavras açucaradas, mas sim por criar entre nossas diferenças e distâncias, um laço tão forte que nenhum outro homem ou mulher conseguira romper.

Conhecemo-nos numa festa onde eu acompanhava um homem que gostava apenas da minha companhia, e ele... Ah... Ele era sozinho, mas um tanto atraente, as mulheres novas roubavam-lhe olhares e as mais vividas soltavam-lhe sorrisos discretos e insinuantes.

Essa festa tratava-se de uma importante conferência, algo como uma reunião de pessoas importantes, ricas e tolas. Era um hotel e permaneceríamos lá por quatro longos e luxuosos dias.

A festa corria de forma natural, o meu homem tinha a boa mania de embriagar-se a ponto de dormir a noite toda, e eu apenas observava tentando parecer discreta a uns, boa mulher a outros e sensual a ele. Meu vestido era vermelho com uma fenda provocante que mostrava pouco a pouco minhas coxas, e ele era coberto pela mesma roupa de todos, porém, portava-se mais elegante.

Eu fumava cigarrilhas e ele charuto, ambos bebiam, mas mantínhamos o controle da situação, ou parte dela.

Parte dela porque eu me via mais livre para olhá-lo, cruzar as pernas e descer lentamente um dedo entre meus decotes, causando-lhe delírios e prendendo seus olhares propositadamente. Essas atitudes audaciosas tiveram um resultado e este veio por meio de bilhetes; o primeiro dizia “seu fumo é doce e enjoativo”, o segundo “você não é diferente”, o terceiro “certamente causa vício” e o último, o qual fora o único que não respondi com sorrisos e olhares diretos, era certeiro e consentâneo “207”.

Esse número...Ah esse número ficou na minha cabeça e roubou-me horas a pensar nos riscos que correria por leva-lo a sério e estas foram suficientes para certificar-me do sono profundo e barulhento de meu homem. Acendi as luzes do quarto da banheira e tranquei a porta com o cuidado de levar a chave para que, caso ele tivesse seu sono interrompido e se desse por minha falta, certamente creria num banho longo. Ainda vestida, ao sair do quarto apenas tirei as sandálias e pus me cautelosamente a procurar pelo “207”, por sorte ou azar, estávamos no mesmo andar e distantes apenas por quatro portas e um jardim de inverno. Hesitei em entrar e até virei as costas como se fosse voltar ao meu quarto, mas não resisti e abri.

“Esperava por você”, fora a primeira frase que soltou em meio da fumaça de seu cachimbo. Estava sentado numa poltrona como quem fazia aquilo para passar a hora, tranqüilo e confiante. Levantou e veio em minha direção, eu me mantive parada, com os olhos fixos nos seus e pude sentir sua mão delicada acariciando os meus seios, estas escorreram pelo meu corpo e envolveram minha cintura, compondo uma perfeita harmonia com seus lábios e nossas línguas. Ainda sem dizer uma palavra virou-se e serviu duas taças de vinho branco, a mesma bebida da festa, e com um beijo mais longo deixava com que seus desejos se sentissem soltos pelo meu corpo: pescoço, seios e quadril e murmurou no meu ouvido “você há de me viciar”, e em meio a gargalhadas minhas me virei para que abrisse o vestido.

Assim foi, com o corpo quase todo nu, exceto os pés, joelhos e metade das coxas cobertas com a cinta liga, as outras partes eram apreciadas e tocadas, como quem acaricia uma pluma, por aquelas tão vividas mãos. Não tive o trabalho de despí-lo, ele mesmo fê-lo como se sob todo aquele tecido borbulhasse o desejo a ponto de ardê-lo. Dele emanava um cheiro bom, que misto homem maduro e charuto bem pago impregnava o meu corpo que, antes coberto de água de rosas, ia pouco a pouco absorvendo aquela mistura erótica: perfume, vícios e suor, deixando todo aquele ar puro manchado do que chamam amor, e eu sexo.

A noite tardava acabar, o que nos resultou em inúmeros prazeres e secantes satisfações, terminamos dentro da banheira, numa sala de banho não diferente da qual tranquei de meu quarto com o intuito de prevenção à minha loucura, e ao sair de lá me sentia completamente leve, entretanto, calava uma espécie de insegurança relacionada à falta de controle sob meus sentimentos, que até então jamais fora presenciada por mim, uma mulher feita e consciente do que é vida e principalmente do que são os homens.

Despedimo-nos com um beijo não diferente do primeiro, mas absolutamente mais saboroso e parti em direção ao meu quarto. Um jardim de inverno e quatro portas; entrei de forma silenciosa, abri a sala de banho e apaguei todas as luzes; assim que me virei para ir à cama, notei um abajur aceso e ao lado dele o meu homem de braços cruzados com os olhos concentrados nos meus movimentos. “Onde esteve esse tempo todo?” ...com um riso malandro e malicioso caminhei lentamente abrindo o robe que cobria um par de seios nus e uma calcinha vermelha comum a mim e fatalmente sensual a eles e só lhe respondi “preparando-me”. Cri não ter notado quando abri a porta do quarto e tampouco a minha ausência, acordou apenas quando as luzes da sala de banho o incomodou, pois cessaram quaisquer dúvidas; também pudera, alguns beijos e alguns toques excitantes faria qualquer homem de idade avançada dormir feito criança casta.

Assim que amanheceu vesti roupa simples, para ser exata não me lembro qual fora, e acompanhada do mesmo homem que apenas dormi, fui tomar café da manhã. Coisas do tipo frutas, sucos, pães, bolos e tortas preenchiam a mesa coberta por uma toalha de renda branca perfeitamente engomada, as flores distribuídas nas mesas individuais como adornos deixavam o salão com um ar fresco e agradável.

Tomei uma xícara de chá e provei alguns doces, não gosto de fruta e tão pouco dos salgados, porém a minha companhia se deliciava pouco a pouco com cada prato servido, sua refeição raramente durava menos de quarenta minutos. Neste tempo fui até a varanda e justifiquei uma vontade incontrolável de manter o hábito das minhas suaves tragadas inspiradas na bela vista de uma manhã parcialmente ensolarada. Assim que voltei ao salão meu homem levantava-se da mesa e oferecia seu braço para um passeio pelo Campo, uma parte do hotel reservada a um ambiente quase todo verde com algumas pinceladas de róseo, azul, vermelho e amarelo e com uma música ouvida ao fundo de modo quase imperceptível, algo que lembrava um conjunto de flautas doces, mas que se tratava de uma animada conversa de seres alados.

Lá se via todas as pessoas que estavam na festa já citada e que não diferente de nós, não tinham nada melhor a fazer senão passear no Campo, entretanto, aquilo era um tanto útil a mim. Útil porque eu fazia mais do que simplesmente olhar àquela natureza tão pura e sem graça, eu procurava pelo motivo que me trouxera todo o riso e satisfação não recebida de uma noite fria e artificial, mas ele não estava em parte alguma e após uma hora de visão besta, minha ansiedade para revê-lo era gritante, meu corpo pedia o seu hálito morno e minha mente me ensurdecia com cada lembrança. A tarde custou a passar, o ócio maquiava as facetas e descarava futilidades, uns bebiam, outros jogavam cartas, umas conversavam, outras riam, eu ria, ele ria, risos surdos –silêncio rude, saudade bondosa.

Meu homem fazia apostas num salão azul preenchido por mesas redondas, fumaça densa, bebida forte, moedas, modas, moldes e mulheres. Eu andava pela cozinha conversando com umas senhoras, ou pela lavanderia procurando pela dona Ana. Dona Ana é uma preta velha e gorda, burra e um tanto fedorenta, mas me faz rir quando não tenho ninguém mais a caçoar, usa um avental marrom que me faz pensar que um dia fora branco, mas por sua mania de sujeira, o pano recebera novo tom. Seus cabelos têm um brilho curioso e chegam a pesar pela quantidade de caspa e óleo que os fios não escondem mais, por baixo das unhas é possível notar restos de frango e uma pasta marrom, o que me intrigava e enojara depois de saber que a velha não usava talheres nem papel higiênico.

Duas horas passaram entre risos e maldades com a Dona Ana, e ele apareceu...Apareceu como se procurasse por mim por todos os cantos daquele hotel, olhava-me com cara de espanto e sorria um sorriso malicioso entre lábios mentirosos e conquistadores. A velha saiu e ele me cumprimentou, mas desta vez suas mãos eram quentes, trêmulas e tão suadas que chegaram a molha-los e umedecer um sutiã.

Cheirava bebida, suor e mulher diferente, mas a mistura novamente me embriagava não permitindo um raciocínio lógico a ponto de formar a desconfiança. Ele vestia roupa simples, tão simples que era capaz de ser confundido com um mero jardineiro, porteiro ou servente, cobria o corpo com uma espécie de pano xadrez e uma calça semelhante à outra preta, mas tão mais velha que lembrava um pano de pó, não vestia sapatos, sequer uma sandália de dedos, em vez disso mostrava os pés tão sujos e grosseiros. Embora toda sua miudeza, simplicidade e falta de elegância me repudiasse, o seu calor, seu toque e sua saliva faziam minha cabeça rodar, e rodar, e rodar, e rodar, mostrando esporadicamente uma imagem tão mais distante e tão mais sensual dele mesmo que me fazia crer que o ele presente trajava uma fantasia sexual e não era nada além do sujeito elegante de uma noite espetacular. Olhava-o pelo olho mágico da porta do meu quarto. Fitava-o como se aquilo fosse uma breve avaliação e reprovava-o até este decidir agir e tocar a campainha. Tocava-a e tocava-a de forma escandalosa e tão mais especial que qualquer outro endinheirado. A área de serviço fora o primeiro espaço, ali me fez sorrir, ali o fiz me olhar, e olhar, e olhar e olhar de um olho real, seco, vingativo e grosseiro. Deixava-me esparramada sob o tanque, abria minhas pernas e em pé saciava seus desejos irracionais, não gemia, não mais me beijava, me lambia, deixava marcas sob meu corpo e rasgava minha roupa como se aquilo fosse a coisa mais excitante a se fazer numa mulher. Não balbuciava sequer uma palavra; palavrão.

A puta. Eu, a puta.

Terminado os possíveis movimentos, se virou e saiu andando. Nenhum olhar e o mesmo sorriso sorrido de lábios mentirosos e conquistadores.

A preta velha observava tudo e ria de lado, olhava de lado, andava de lado e dizia que eu poderia ter usado o seu quarto, uma porta pequenina de madeira fina e bem próxima a mim, mexendo apenas os olhos, estava ao eu lado. Não respondi, não era capaz de mover um só músculo do meu corpo, senti minhas pernas até o ponto de não mais senti-las. Os joelhos, as mãos, e todo o peso que eu carregava era acomodado sobre meu braço, cotovelos e mãos dormentes (pessoas) e somente à madrugada e num silencio confiável eu desci daquele tanque e rastejei meus trapos ao quarto.

O meu homem não estava lá e o hotel todo se mostrava silencioso, talvez estivesse acontecendo mais uma das grandes festas estúpidas e luxuosas no mesmo salão do vestido vermelho, do vinho branco e do fumo enjoativo e nada mais singular que a minha chegada atrasada e extremamente atraente.

Três e Mais. Seis e Três. Quatro e excesso.Cinco e Oito vezes me olharam, eram dois. O primeiro acompanhava a gorducha de cabelos vermelhos, o segundo uma mais nova e menos sensual que eu. Era fato que fui capaz de sentir o calor de tantos olhos e ouvir as palavras sussurradas ao meu respeito. Assim, com Ele não foi diferente, acompanhava cada passo meu, primeiramente foram os seus olhos e mais tarde os seus pés até eu ser surpreendida por um puxão, dizia ele que era um passeio breve e que ninguém seria capaz de notar a minha falta, assim foi. Saímos na sacada e atravessamos um corredor apertado que dava no Campo, ele vestia roupa de festa e cheirava bem, mostrava-se o mesmo homem que conheci, fumava seu bom charuto e me olhava do mesmo jeito penetrante, calamo-nos por quase uma hora e a única coisa que me falou de forma calma e sedutora fora “você vem sendo o meu maior vício”, mas desta vez eu não ri, não senti tesão e tão pouco tive vontade de beija-lo, desta vez ele não tocou os meus seios e não lambeu os meus lábios, deixou comigo o seu fumo e sumiu.

A festa estava no fim quando me pus de volta no salão, meu homem via-se bêbado e ao me ver abriu os braços e de bons metros de distância gritou “minha linda”, as mulheres já eram desbotadas, a comida passava a cheirar mal e as toalhas brancas já se tornavam amarelas.

Subiam os poucos andares pelo elevador, eu, meu homem, a moça lilás e a outra azul, ambas riam escandalosamente e vez ou outra soltavam uns soluços, assim que a porta se abriu viraram à esquerda e eu à direita, num corredor menos longo que o delas, entre portas e um belo jardim de inverno. Pus-me a procurar pela chave e pelo respectivo apartamento, entramos e ele se jogou na cama, cri numa futura noite terrível pelo volume de seus roncos, mesmo assim tinha o carinho de não incomodá-lo e vez e outra jogar uma coberta sob sua enorme pança.

A noite insistia em fazer companhia, a lua sorria prateada e as estrelas cantarolavam numa língua desconhecida oferecendo um convite à observação. Meu corpo chegou a arder de tanta fumaça que eu inspirava, minha boca já era seca e meus cabelos cheiravam mal, foi então que resolvi ligar a banheira e deixar escorrer todas as minhas tensões do dia passado, uma vez que as tragadas não me resolveram nada.

Fechei os olhos e a espuma me fazia carícias como se estivesse numa nuvem, a água era quente e cremosa, tive o cuidado de pegar as velas, as flores e o incenso na tentativa de fazer cênico o meu prazer cínico. O tempo passava despercebido, até a água perder sua limpidez e cada vez mais tomar corpo e densidade, as flores já eram murchas e o incenso passara a ser o pior dos odores. Eu era banhada de sangue e sentia uma grande sonolência. A luz das velas me mostrava uma sombra e os meus ouvidos me gritavam gargalhadas que não eram dele e que não eram minhas, ele dormia e eu me banhava. Alguém ria. O olho. O fumo e o vício. Eu era viciada; era eu o fumo dele.

Insônia. Cochilos e pesadelos.

Bilhetes, bebidas e um cheiro enjoativo e um vestido vermelho e um tanque e sangue.

Sangue meu no dele.

Suor carícias, malícias.

Insônia.

Pesadelo.

Quatro horas de uma madrugada silenciosa e fria, uma sala de leitura, um sofá de couro e uma cortina cor de carne. O hotel era calado exceto os meus próprios ruídos; vestia um mesmo robe e chinelas de quarto; pretendia ler para ocupar a mente e livrar-me dos maus pressentimentos, poucas linhas e alguns minutos foram suficientes para me enjoarem, percorri o hotel todo pela varanda e fiquei boa parte apreciando a vista do Campo debruçada no parapeito e tendo os dedos ocupados com um dos meus prazeres. A fumaça concentrada subia lentamente, pouco a pouco ia se dissipando até sumir e logo vinha outra nuvem tão cinza e bem formada como a anterior, e sumia, e outra, e sumia, e sumiam todas deixando lembranças perfumadas ao meu redor. Eu era tensa e quase me sentia bem com a antítese da autora.

O tempo chegara a ser imperceptível e o céu até começava a mudar de tonalidade, mas o cheiro do meu fumo não era mais agradável e chegava a me causar vertigem, a fumaça não era mais algo de apreciação considerável e o meu prazer era novamente trocado pela angustia.

[A ampulheta]

Meus mamilos causavam uma protuberância no robe, minha boca era seca e minhas mãos completamente geladas, uma fumaça menos bela e menos perfumada roubava a cena, dedos tão mais grosseiros que os meus faziam gestos semelhantes... “Irresistível, eu diria”, foram as suas primeiras palavras pronunciadas no meu ouvido, com uma mão separava meus cabelos do pescoço e deixava que sua língua fizesse todo o trabalho, nenhum pêlo do meu corpo se via calmo, meu coração batia em ritmo desordenado e já sentia meu órgão preparar-se para o leito.

Mas não, não me entreguei àquela sinestesia, não me fiz néscia e não senti culpa por isso. Fui embora e o deixei a espera, na varanda, crente que permanecia lá, me observando, me inventando, me almejando, mas lá, na varanda; distante de mim que corria e já fitava o salão azul, preenchido de mesas, de jogos, de vícios e ausentes. Sossego, silêncio, palpitação.

[A ampulheta]

Fiquei atrás de uma caixa grande encostada num canto da parede, distante da porta do corredor e ingenuamente próxima a da varanda, eu tremia e lacrimejava, pela primeira vez cri no deus e em todas as rezas da infância, pedi perdão e jurei ser mais humana, me arrependi e prometi inúmeras coisas, isso tudo não adiantava nada, não me tirava do salão e não me confortava, mas eu insistia em pedir socorro, mesmo que fosse um pedido ignoto, mesmo que fosse um socorro imaginário, eu implorava para alguém me livrar daquela pessoa estranha, desconhecida e fatalmente caracterizada de meus modos.

Centrava meus olhos na porta e buscava alguma sombra para certificar-me que corria perigo. Não se ouvia barulho, não se notava movimento estranho e não se sentia cheiro novo; me levantei e caminhei até um interruptor para acender as luzes, certamente a claridade era mais segura que o escuro.

Certamente.

[A ampulheta]

Corredor vazio, poltrona vazia, sofá vazio, mesa vazia, salão e eu. E a varanda. “Achei você?...”.

Achara.

“Por que corres de mim?” E risos e dentro do salão.

A parte superior do meu corpo não respondia a nenhum comando nervoso, a mente não obedecia ao coração e sequer os olhos eram capazes de fingir.

“Por que corres de mim?...”.

A espuma me fazia carícias como se estivesse numa nuvem... Tive o cuidado de pegar as velas.

A água perdera sua limpidez e cada vez mais tomara corpo e densidade. Os meus ouvidos me gritavam gargalhadas que não eram dele e que não eram minhas, ele dormia e eu me banhava. Alguém ria. O olho. O fumo e o vício.

Ainda sim o sentia, mas ele já não me faria mal.

Debaixo das unhas sobravam carnes do pescoço e o líquido adocicado do gozo, eu carregava um gosto de sangue na boca e já vestia o vestido vermelho.

As flores eram murchas e não havia mais a ampulheta.

O beijei tantas vezes, mas não consegui acorda-lo, cheguei a acreditar que já era calmo e dormia um sono profundo.

Não incomodei, mas não pude deixa-lo lá, sozinho, ali mesmo eu fumava, o olhava, o cuidava, e me vestia: vermelho; desde então qualquer roupa minha era vermelha.

Esperei e acabei cansando. Ele realmente preferia dormir.

O mesmo bar. As mesmas músicas e o mesmo cigarro enjoativo. Ele não estava lá, mas havia de chegar. Era fato que já dormira o suficiente.

Talvez estivesse acordando, se perfumando, vestindo uma roupa vermelha e descendo as escadas do hotel.